O FILHO DE PAI INCÓGNITO
O ilustre ipupiarense de quem se trata aqui empregou os
melhores dias dos seus longos anos de vida trabalhando em empresas diversas na longínqua
“Terra da Garoa”.
Mãe verdadeira, achando-se em circunstância assemelhada em
certo sentido à daquela mãe da história bíblica, que preferiu entregar seu filho
– vivo - para não o ver partido ao meio pela espada de Salomão, Virgilina Maria
da Conceição preferiu entregar o seu aos cuidados de Avivência Leite Mendonça e
Cícero Fernandes Mendonça, para não o ver morrer de fome.
Ao abrigo do novo lar, situado na sede da Vila que viria a
se tornar na atual cidade de Ipupiara, o menino crescia no meio simples junto com
outros coetâneos seus. Morando numa casa de frente para a lagoa, saía a fazer
estripulias pelos quatro cantos da Urbe.
Aos nove/dez anos, sentado na janela da Igreja Batista
Evangélica da Vila de Ipupiara, ficava a ouvir pregações de missionários e
pastores que de vez em quando apareciam, vindos de vários cantos do Estado da
Bahia. Bom de memória, ele carrega a lembrança do sermão que ouvira do pastor Gutemberg
Neris Guarabira, uma pregação convincente fundada na Parábola do Filho Pródigo
que o ilustre pregador batista entregou aos ouvintes daquela congregação, organizada
sob a supervisão da Igreja Batista de Barra do Rio Grande.
Eis que sua hora de sair de casa a procurar emprego pelo
mundo afora veio chegando. Pacato, o jovem precisava de ir levado. Quem se habilita
a levá-lo é Abdias Machado, marido de Olindina Leite Mendonça, sua irmã
adotiva. O destino fica no interior do Estado de São Paulo.
Uma mata a ser derrubada para dar lugar a um cafezal os
aguarda. Pirajuí, Estado de São Paulo: “é para lá que as malas batem!”. O jovem
imigrante começa a trabalhar, desmatando, preparando o terreno para o plantio
de café, visando a uma boa colheita. Não demorou para ser promovido a fiscal
dos outros na lavoura de café. Fiscalizar e anotar o que os homens faziam e o
que deixavam de fazer, esse é o seu novo encargo. Assim a jornada dele no
interior paulista se cumpriu.
O destino agora fica na capital do Estado, cidade de São
Paulo. Começa a trabalhar em uma usina de processamento de leite, no Brás,
precisamente na rua Bresser. A usina Vigor, naquele tempo, acabou se tornando
um ponto de acolhimento de imigrantes baianos, vindos sobretudo de Ipupiara e
região. Nosso ilustre cidadão ipupiarense deixou a Vigor e ingressou no quadro de
funcionários de uma fábrica de brinquedos, onde trabalhava fabricando canos de
lata.
Também pediu conta do emprego na fábrica de brinquedos e
foi trabalhar em uma fábrica de transformadores elétricos, no bairro do Cambuci.
Agora seu ofício é fazer a bobinação de transformadores.
Saiu da fábrica de transformadores elétricos e foi
trabalhar na indústria de eletrodomésticos Arno. Saiu também desta para
trabalhar na empresa Real Transportes Aéreos, sob a gestão do comandante Lineu
Gomes.
Da Real Transportes Aéreos saiu para ingressar na TV Record,
onde trabalhava como Cabo Men, Eletricista e Iluminador. Nesta época, a Record
pertencia ao Sr. Paulo Machado de Carvalho e sua família. Ficava na Rua Meruna,
no bairro Aeroporto.
O bom filho não se esquece da terra-mãe. Estimulado pelos ensinamentos
da doutrina espírita kardecista, cultivando um forte sentimento de
solidariedade humana, o obreiro ipupiarense juntou-se a outros conterrâneos e
criaram em São Paulo a organização “Amigos de Ipupiara”. Por meio dessa
entidade providenciavam o envio de auxílio material para ajudar os pobres de
sua terra natal.
Sob a orientação da Sociedade “Amigos de Ipupiara”, criada
em São Paulo, foi criado em Ipupiara o Centro Espírita Viajores do Infinito, dirigido
por Clementino Luiz de Souza, mais conhecido como “Souza” ou “Doutorzim”.
O Centro Espírita Viajores do Infinito recebia toda sorte
de donativos, inclusive variados tipos de brinquedo: bonecas, bolas de futebol,
carrinhos de plástico, bolas de gude etc. O Centro distribuía esses presentes para
as crianças pobres da cidade, proporcionando momentos de extraordinária alegria,
sempre em datas especiais, como Dia das Crianças, Natal etc.
Marcado pela sina de ser filho de pai incógnito, e uma vez
homem feito, esse notável homem do bem decidiu que iria se casar, porém, com
uma peculiar condição: a escolhida para ser sua mulher teria que já ter filhos,
de modo que nessa condição, ele pudesse adotá-los e registrar como seus. Isso para
que eles o chamassem de pai.
O filho de Virgilina e Avivência prometeu pagar a Deus com
a cria dos filhos dele, expressando dessa forma sua gratidão pela vida que dele
recebeu. Promessa feita, promessa paga: casou-se com Marlene Ferreira e
tronou-se pai dos dois filhos dela, Fernando e José Garcia. O primeiro infelizmente
veio a falecer precoce e tragicamente.
De volta a sua amada terra natal, ele fez um discurso por
ocasião do desfile cívico de 7 de setembro de 1987, do qual permito-me destacar
este trecho:
“Lembro que nascido este que lhes fala, ali na Lagoa de Prudente.
Criado aqui à beira da lagoa, trago no meu coração, como todo jovem de Ipupiara,
a Lagoa do Carranca. Vi, quantas vezes passar por ali, onde nós nos
desenvolvemos fisicamente, as ‘comitivas’ que decidiam os destinos deste
município. A partir da casa de vovó Felícia, de Antonio Leite Sobrinho (braço
direito desta cidade), Vêncio Araújo, José [Zuza], Raul, Israel, João e Isaías
Pereira Machado, e chegando ali aonde nos referimos, estavam aqueles corações
que receberam esta pobra criatura: Cícero Fernandes Mendonça e Avivência Leite
Mendonça, meus pais adotivos”.
Sua espiritualidade sempre aguçada passou por uma profunda metamorfose
no final dos anos de 1990: tendo sido fiel seguidor da doutrina kardecista durante
um longo período de sua vida, converteu-se à fé evangélica da corrente
neopentecostal, integrando-se ao corpo de membros da Igreja Universal do Reino
de Deus.
Na exuberância dos seus noventa e quatro anos bem vividos,
hoje, em 2025, Eurico Mendonça experimenta a graça de saber que é amado como
filho do Pai Celestial.
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*Arides Leite Santos nasceu
em Ipupiara-Bahia. Estudou no Centro Educacional Cenecista de Ipupiara, sob a
direção do talentoso professor Nenildo Andrade Leite, de saudosa memória. Migrou
para Brasília em 1983. Formou-se em Ciências Contábeis e Direito (AEUDF). Fez MPA
em Controle Externo (FGV-RJ). Pós-Graduação em Direito Público (UnB), Filosofia
(UCAM), Teologia do Novo Testamento (Fabapar). É coautor de “Sociedade
Democrática, Direito Público e Controle Externo” (org.: José Geraldo de Sousa
Junior). Autor dos livros “História dos Batistas em Ipupiara: a obra das
missionárias no sertão” (Scortecci, 2009), “Tomada de Contas Especial: o exercício
do contraditório perante o Tribunal de Contas da União” (Scortecci, 2014), “Ipupiara
e Ibipetum: história de lutas na Chapada Diamantina” (Scortecci, 2015).
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