IPUPIARA
DA MINHA INFÂNCIA
Clóvis
de Sousa Nogueira
A Rua do Correio, atualmente Rua Miguel
Calmon, no centro da cidade, foi onde eu vivi toda minha infância. Do início da
rua, em direção ao cruzeiro, da casa do senhor Teotônio e Dona Vitória
(Pretinha), até o final da rua, na casa do senhor Manuel e Dona Arlinda; ali
era o nosso mundo, não havia mais nada além daquele cantinho.
Nos anos da minha infância, Ipupiara ainda era uma cidade parcialmente isolada
do resto do mundo, não tinha energia elétrica, telefone, televisão, e
pouquíssimas pessoas possuíam um rádio de pilha. A comunicação à distância era
feita por meio de cartas, que dependendo da localidade demorava até quarenta
dias para chegar. As ruas não eram pavimentadas, não havia muitos carros,
caminhões ou motocicletas, e os habitantes, principalmente da zona rural, se
locomoviam em lombos de animais. Jumentos, cavalos, vacas e galinhas andavam
soltos pelas ruas e praças. Na segunda-feira, o dia da feira livre, os
moradores da zona rural que vinham comprar e vender produtos, amarravam seus
animais em cercas e árvores existentes no entorno da cidade. A compra de
mantimentos, como: arroz, feijão, carne, farinha de mandioca, fubá de milho,
óleo de cozinhar, sal, pó de café e rapadura, era feita na feira livre ou em
pequenas mercearias. Na maioria das casas só havia fogão a lenha, era comum ver
mulheres vindo do mato com feixes de lenha na cabeça. As casas eram modestas,
construídas com adobe, piso de ladrilho de barro, calçadas de pedra, portas e
janelas de tábuas fechadas com tramelas ou tranca. Não havia sanitários como
temos hoje, na maioria das casas havia uma privada de buraco, que geralmente
ficava no fundo do quintal. A roupa era lavada em tanques de pedra em locais
públicos, como Fonte de Cima e Pau Louro, de onde também se buscava água para
os serviços domésticos, carregada na cabeça em latas de querosene adaptadas
para essa finalidade. A mobília e os utensílios domésticos da maioria das casas
eram muito simples, uma mesa com algumas cadeiras ou tamboretes com assentos de
couro cru, camas com colchões de palha de bananeira, cabide de madeira, pote de
barro, ferro a brasa, pilão, candeeiros a querosene, tacho para torrar café,
bule, coador de pano, moinho de grãos, triturador de feijão etc. Não tínhamos o
conforto nem a fartura que temos hoje, mas éramos satisfeitos com o pouco que
tínhamos. Minha infância em Ipupiara, como a de todos os meninos à época, foi
marcada por sabores e brincadeiras inesquecíveis! Comi sonho da Dona Cantú;
coloquei sapato debaixo da cama nas noites de natal; soltei bombinha em festas
juninas; fui vacinado com “pistola”; joguei bola na rua; comi da merenda
escolar preparada pela Dona “Jove”; bati caixa no 07 de setembro; brinquei de
“brindjá”; empinei pipa; tomei banho de açude; andei com pernas de pau; fugi
das caretas; brinquei de chicotinho queimado; fiz carrinho de lata, de caixote
e de rolimã; banhei na chuva; fiz tapagem de areia na enxurrada; armei fojo;
armei arapuca; joguei pedra com baladeira; fui aluno da Escola Bíblica
Dominical; participei da Escola Bíblica de Férias; toquei violão e berimbau...
É impossível falar da minha infância, e da rua do correio onde nasci, sem falar
da Dona Lovina. Lavínia Maria de Souza, popularmente conhecida como Dona
Lovina, nasceu no povoado de Lagoa do Barro, no dia 29 de agosto de 1921, filha
de Antônio Figueiredo dos Santos e Felizbela Maria de Souza. Ainda criança
mudou-se com seus pais para o povoado de Caldeirão, próximo a Sodrelândia.
Lavínia teve sete irmãos, a saber: Rosalvo Antônio dos Santos (04.11.1920),
Aristides Antônio dos Santos (17.02.1924), João Antônio dos Santos
(17.09.1926), Carolina Maria de Souza (30.11.1930), Artur Antônio dos Santos
(26.09.1931), Salustiano Antônio dos Santos (01.02.1935), Dejanira Maria de
Souza (05.12.1938) e Helenita Maria de Souza (14.12.1942). Todos já falecidos,
exceto Salustiano Antônio dos Santos. Tempos depois, com a mudança da família
para Vila de Jordão, atualmente Ipupiara-BA, Lavínia conheceu José Martins
Sodré (Seu Zequinha), com quem se casou no dia 26 de junho de 1940. Após o casamento
foram morar no povoado de Olho D`água, município de Ipupiara, onde nasceram os
quatro primeiros filhos, a saber: Argileu Martins Sodré (in memoriam), Renilde
Nunes Sodré, Gisélia Sodré Martins e Joston Martins Sodré (in memoriam). Tempos
depois, vieram morar na cidade, para que os filhos pudessem estudar. Em
Ipupiara nasceram mais dois filhos, a saber: Cláudio Martins Sodré (in
memoriam) e Maria da Glória Martins Sodré (Dó). Dona “Lovina” não frequentou a
escola, e por muito tempo não sabia ler nem escrever, porém, em 1970 foi
alfabetizada pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização, MOBRAL.
Ela cativava a simpatia de todos com sua alegria, principalmente a criançada.
Como era doceira, e passava muito tempo à beira do fogão, só se via ela de
avental, fazia parte de sua indumentária, não me lembro de ter visto Dona
Lovina sem avental, parece que ela dormia com ele. Sua casa era muito
frequentada, a criançada da rua entrava e saía durante todo o dia para comprar
doces. Ela vendia doce de coco, doce de buriti, bolo brevidade, pirulito, todos
feitos por ela, especialmente o pirulito, enrolado no papel e enfiado no
palito. Todo dinheiro que a gente ganhava, corria para casa da Dona Lovina. Ela
nasceu com tino para negócio, penso que se tivesse oportunidade seria uma
comerciante de muito sucesso.
Na rua do correio a comida tinha cheiro e sabor. O cardápio de todos os dias
era basicamente o mesmo: feijão, arroz, ovo ou um pedaço de carne, quando
tinha. Nossa casa ficava vizinha à casa da Dona Lovina, e quando ela estava
cozinhando, aquele cheiro agradável chegava até minha casa e eu desejava comer
da comida dela. Um dia perguntei à minha mãe por que a comida dela não cheirava
como a da Dona Lovina. Ela me respondeu que usava os mesmos temperos, e disse:
“o que faz a comida da Dona Lovina cheirosa é a fome, meu filho”. Ela tinha
razão. Como não comíamos nada antes das refeições, porque não tínhamos, na hora
do almoço a fome era tamanha que “limpávamos” o prato, não havia comida
ruim. Houve um tempo na rua do correio que nenhum dos meninos possuía
bicicleta, isso levou Dona Lovina comprar uma pequena bicicleta e colocar no
aluguel. A meninada da rua fazia fila para alugar. O aluguel era cobrado por
minutos rodado. Uns alugavam por dez minutos, outro por trinta minutos e até
por uma hora. Me lembro que certo dia bem cedo a fila já estava enorme, e os
primeiros da fila eram Bada de Catarina e Filinto de Justina, os mais
traquinas. Dona Lovina chegou com a bicicleta e a caderneta de anotações no
bolso do avental. Em seguida, marcou o tempo no relógio e liberou a bicicleta
para os primeiros da fila. Quando os dois saíram eram nove horas, deveriam
retornar às nove horas e vinte minutos. A fila de menino já estava para
lá da casa da Dona Chiquinha e seu Zuza. Deu nove e vinte, e nada de Bada e
Filinto. Dez horas, e nada. Onze horas, e nada. Dona Lovina já estava aflita,
entrava e saia, e nada dos meninos. Às 17h, na esquina do bar de Sebastião
(Tião), aparece Bada com uma parte da bicicleta nas costas e Filinto com outra.
Chegaram e jogaram o que restou da bicicleta aos pés de Dona Lovina. Ela botou
as mãos na cabeça, e disse: “valei-me, minha nossa senhora! O que foi isso,
meninos?!”. Naquele dia Dona Lovina ficou brava, coisa que era difícil
acontecer, e disse aos traquinas que aquela foi a última vez que eles andaram
em sua bicicleta. No dia seguinte, depois da bicicleta arrumada, lá estávamos
na fila novamente para mais um dia de aventuras, agora, sem Filinto e Bada.
Nos anos 70, não havia interfone ou campainha em nenhuma casa da rua do
correio, e nem da cidade. Portanto, se alguém quisesse chamar pelo dono da casa
era preciso bater à porta ou chamar pelo nome. A casa da Dona Lovina era
diuturnamente frequentada por uma procissão de meninos à procura dos doces que
ela fazia. Pois bem, o seu papagaio, de tanto ouvir a meninada chamar,
aprendeu a chamar também. E fazia isso tão bem, que a confundia muitas vezes.
Me lembro, que nos idos de 1974, havia uma música de grande sucesso, “Cadê
você”, do cantor Odair José. Todos os dias, ao amanhecer, o papagaio começava a
cantoria: “Cadê você, que nunca mais apareceu aqui”. Naquele tempo não sabíamos
o que era marketing, e creio que Dona Lovina também não, mas aquele papagaio
era o seu marqueteiro. O papagaio morreu em 2023, aos cinquenta e dois (52)
anos.
Me lembro de outro episódio muito engraçado envolvendo o amigo Agnaldo, filho
da Dona Justina. Dona Lovina o contratou para fazer um cimentado em seu
quintal. Mas, o aspirante à profissão de pedreiro errou a dosagem da massa,
colocou muita areia e pouco cimento. Vinte quatro horas depois do serviço
pronto, Dona Lovina, após ter lavado algumas peças de roupa, jogou a água no
cimentado, que desmanchou completamente. Imediatamente, o “pedreiro” foi
chamado para dar explicação. Ao chegar no local, Dona Lovina perguntou o que
havia acontecido. Ele disse que não sabia, que o serviço foi feito no capricho,
e perguntou a Dona Lovina se a água que ela havia jogado no cimentado continha
sabão. Ela respondeu que sim. Então, o “pedreiro” constatou o problema,
dizendo: “Foi isso, Dona Lovina, não pode jogar água com sabão, o cimento não
combina com água de sabão”. É claro que Dona Lovina não acreditou na
justificativa. E exigiu que o serviço fosse refeito novamente, e o recomendou
que colocasse cimento sem pena.
Se alguém me perguntasse qual a cidade do meu coração, aquela que sinto saudade
quando estou longe, eu não teria dificuldade em responder. Não consigo viver
longe de Ipupiara, minhas raízes estão aqui, meu amor por ela é radical. Quero
finalizar essa declaração de amor com as palavras de um poeta, ele disse:
“Quando eu penso nas pessoas que eu amo, e que muitas delas não caminham mais,
pelas ruas de nossa cidade, nem habitam mais em nossas casas, e nem ouvem mais
o nosso canto, mas residem, para sempre, em nossa saudade. Quando penso, tantas
mãos que hoje faltam, tantos risos apagados, é em vão guardar pedaços de
recordações. Eu me agarro à esperança de nos vermos, caminhando pelas ruas de
cristal, na cidade eterna, onde não haverá adeus”. (Paulo Cesar – G. Logos). A
razão do amor que sinto pela cidade onde nasci, são as pessoas, sem elas tudo
perde o valor. Alguém disse que: “A saudade é a maior prova de que o passado
valeu a pena”.
(DO
LIVRO EM PREPARO: “O LIVRO DA MINHA VIDA”)
SOBRE O AUTOR:
CLÓVIS DE SOUSA NOGUEIRA nasceu
em Ipupiara a 16 de junho de 1967. É pastor da Primeira Igreja Batista de
Ipupiara. Não tem livros editados, mas seus trabalhos publicados nas redes
sociais dariam vários livros, além do trabalho que faz junto aos membros e não
membros da Igreja na cidade, incluindo a zona rural. Dirige o programa
PROCLAMANDO CRISTO na rádio Diamantina FM 104,9. Sob sua direção, a Igreja
mantém congregações em Brotas de Macaúbas e nos povoados de Bela Sombra,
Chiquita e Furados. É casado com Eliene Sodré de Andrade Nogueira e pai de três
filhos: Alber Luiz de Andrade Nogueira, Lincoln Brainerd de Andrade Nogueira e
Cléber Lewis de Andrade Nogueira.
Reside em Ipupiara, Bahia.
Muito bom, meu querido amigo e irmão Clóvis! A presença de seu Zequinha, Dona Lovina, seus filhos marcaram a nossa geração. Estas lembranças tão bem narradas por você nos proporcionam uma viagem sensacional no tempo primordial das nossas vidas. Tendo crescido na Rua Rui Barbosa, bem ao lado da Miguel Calmon, tive o privilégio de saborear o pirulito, a cocada e outras coisas gostosas que Dona Lovina fazia. É muito importante ter pessoas lúcidas como você, que se dispõem a transpor da memória para o publico história de vidas como esta. Grato pelo privilégio de poder acessar esse conteúdo tão precioso!
ResponderExcluirObrigado meu caro Arides. O Blog Literário do Filemon agradece sua leitura e comentário. Lembrando que o Blog continua à sua disposição. Grande abraço do Filemon.
ResponderExcluir✨🌾🕊✨
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