O homem e sua liberdade
segundo Jean-Jacques Rousseau
Por Arides Leite
Santos
Este artigo apresenta algumas
intuições filosóficas de Jean-Jacques Rousseau
sobre a liberdade do homem no estado de natureza e no estado
civil, apreendidas no seio de suas três grandes obras: “Discurso sobre a
origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, “Emílio, ou, da educação” e “Do contrato
social”.
1.O homem e sua liberdade no estado
de natureza
O homem é livre para agir,
isto é, tem o poder de decidir se aceita ou rejeita algo. Há homens que se
entregam a excessos e daí lhes vem febre e morte. Agem assim “porque o espírito
deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala”. O que
mais distingue o homem dos animais não é o entendimento, mas a liberdade.
Assim, livre para concordar ou resistir, e consciente dessa liberdade, o homem
se sente capaz de fazer escolhas, e a base desse sentir é constituída de atos
puramente espirituais (DISCURSO, p. 64).
A faculdade de se
aperfeiçoar é outra característica do homem que o distingue
dos animais, e está presente tanto no indivíduo
quanto na espécie.
Dotado dessa faculdade
e com o auxílio das circunstâncias, o homem desenvolve todas as
outras. “O animal, ao contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda
a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, será a mesma que era no
primeiro ano” (DISCURSO, p. 64/65).
As necessidades fazem surgir
as paixões no homem e lhe propiciam o progresso nos conhecimentos, “pois só se
pode desejar ou temer as coisas
segundo as ideias que delas se possa fazer,
ou pelo simples impulso da natureza”. É por isso que “o homem selvagem,
privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta última
espécie”, pois “seus desejos” se limitam a “suas necessidades físicas”. “Os
únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso”.
E os únicos males que teme são “a dor e a fome”. Sim, a dor - e não a morte -, “pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e
de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao
distanciar-se da condição animal” (DISCURSO, p. 66).
De todas as paixões, a única
que nasce com o homem e não o deixa
nunca durante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão
primitiva, inata, anterior
a qualquer outra
e da qual todas as outras
são apenas modificações (EMÍLIO, p. 249).
O entendimento humano muito
deve às paixões, pois é em função delas que a faculdade da razão se aperfeiçoa;
“só procuramos conhecer porque desejamos usufruir” (DISCURSO, p. 65).
“O homem encontrava unicamente no instinto” - diz Rousseau
– “todo o necessário
para viver no estado de natureza; numa razão cultivada só encontra aquilo
de que necessita para viver
em sociedade”. Sendo assim, “qual poderia ser o gênero de miséria de um ser
livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde?”
Quem “ouviu dizer que um selvagem em liberdade
pensou em lamentar-se da vida e querer morrer”? E “qual das duas – a vida civil ou a natural
– é mais suscetível de tornar-se insuportável àqueles que a fruem?”
(DISCURSO, p. 74/75).
Em contraposição ao que
Sócrates e outros iluminados ensinaram, Rousseau compreende a piedade como um
sentimento nato do ser humano e não como uma virtude adquirida ao longo da vida
com o desenvolvimento da razão (DISCURSO, p. 78/79).
Ele atribui a essa “bondade natural” do homem uma função reguladora admirável.
Vejamos em suas próprias palavras:
Moderando em cada
indivíduo a ação do amor de si mesmo, a piedade concorre para a conservação
mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos
sofrer. No estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da
virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce
voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a
um velho enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo
possa encontrar a sua em outra parte; ela [a piedade], em lugar desta máxima
sublime da justiça raciocinada – Faze a outrem o que desejas que façam a ti -,
inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos
perfeita, mas talvez mais útil do que a precedente – Alcança teu bem com o
menor mal possível para outrem. Numa palavra, antes nesse sentimento
natural do que nos argumentos sutis, deve-se procurar a causa da repugnância
que todo homem experimentaria por agir mal, mesmo independentemente das máximas
da educação (DISCURSO, p. 78/79).
Os homens se preocupavam mais em se defender do mal que temiam sofrer
do que em fazer o mal a outrem,
e assim viviam sem estarem
sujeitos a disputas
perigosas. Não tinham nenhuma espécie de comércio entre
si, não conheciam a vaidade, a consideração, a estima, o desprezo. Viviam
sem qualquer noção do teu e do
meu. Não tinham nenhuma ideia verdadeira
de justiça. Não pensavam em vingança, a não ser ali no calor do momento, “à
maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram”. Então, suas disputas
raramente levariam a consequências sangrentas (DISCURSO, p. 79).
No estado de natureza, o homem provavelmente vivia assim:
errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma
necessidade de seus semelhantes, bem como sem nenhum desejo de prejudicá-los,
talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, [...] sujeito a
poucas paixões e bastando-se a si
mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no
qual só sentia suas verdadeiras
necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo
sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. Se por acaso descobria qualquer
coisa, era [incapaz]
de comunicá-la, [como o era de
reconhecer] os próprios
filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia
educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo
cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem
continuava sempre criança (DISCURSO, p. 81/82).
De espírito mais esclarecido, deixando de adormecer sob a primeira árvore, ou de recolher-se a cavernas, o homem encontrou alguns tipos de machados de pedra, que serviam para cortar lenha, cavar a terra e fazer choupanas de ramos, que passou a cobrir de argila e de lama. A essa época se prende uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, supõe-se que os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los. Quanto aos que já possuíam cabanas, certamente nenhum deles procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um combate violento com a família ocupante (DISCURSO, p. 90).
A moralidade vai se
introduzindo nas ações humanas, o indivíduo se comporta como o juiz e o
vingador das ofensas que recebe. A bondade que antes lhe era útil no estado
puro de natureza, agora na sociedade nascente
já não lhe serve tanto.
Punições mais severas
são impostas para ofensas que se tornam mais frequentes. O terror das
vinganças se faz presente em lugar de freio das leis. Comparado
com o estado primitivo da indolência e com aquele
onde a petulância do amor-próprio predomina, “esse período de
desenvolvimento das faculdades humanas [...] deve ter sido a época mais feliz e
a mais duradoura”, e “era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem,
que certamente saiu dele por qualquer acaso
funesto que, para a utilidade
comum, jamais deveria ter acontecido” (DISCURSO, p. 93).
2. Do estado de natureza para o estado civil
Rousseau entende que a ideia
de propriedade veio a se formar no espírito humano como resultado da evolução
de ideias anteriores ao longo de séculos, e que fora preciso fazer muitos
progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de
geração a geração, antes de o estado
de natureza chegar
a seu termo. Já a consolidação da sociedade civil parece que se deve a atos de
afirmação da propriedade privada:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o
primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer
isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos
crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a
seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que
os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ (DISCURSO, p.
87).
O hábito de viver junto levou
o homem a conhecer os mais doces
sentimentos que se pode mencionar, como o amor conjugal e o amor paterno. “Cada
família tornou-se uma pequena sociedade, ainda mais unida por ser a afeição
recíproca e a liberdade os únicos liames”. Foi assim que “se estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois sexos,
que até aí nenhuma apresentavam”. Sedentárias, as
mulheres tomavam conta da cabana e dos filhos, enquanto os homens iam procurar
comida para suprir a todos (DISCURSO, p. 90/91).
Com a vida sedentária, começa
a se formar uma nação, mas não de forma organizada sob leis, e sim em virtude
do mesmo gênero de vida, de alimentos, da influência comum do clima. Uma vizinhança permanente torna o ambiente
propício para que haja ligações entre as famílias. “Acostumam-se
a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente,
adquirem-se ideias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de
preferência”. Passam a se ver com frequência cada vez maior. “Insinua-se na
alma um sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso;
com o amor surge o ciúme, a discórdia triunfa e a mais doce das paixões recebe
sacrifícios de sangue humano” (DISCURSO, p. 91/92).
O homem começou a olhar os outros e a desejar
ser ele próprio olhado, valorizando a estima pública, e nesse caminho
de valorização do ego tomou
um rumo decisivo e sem
volta.
Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo,
o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi
esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto
para o vício;
dessas primeiras preferências nasceram, de um
lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja (DISCURSO, p.
92).
Os homens viveram tão livres, sadios,
bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, mas, desde o instante em que
um homem sentiu necessidade do socorro de outro, então desapareceu a igualdade,
introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas
florestas transformaram-se em campos aprazíveis, trazendo junto a necessidade
de regá-los com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e a
miséria germinarem e crescerem com as colheitas (DISCURSO, p. 94).
Ter poucas necessidades e se
comparar pouco aos outros é o que torna o homem essencialmente bom. O que o
torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e atentar muito à opinião. Ocorre
que, por não poderem viver
sempre sós, dificilmente os homens viverão sempre bons: essa dificuldade
aumenta com as suas relações. É por isso que os perigos da sociedade tornam
indispensável que sejam tomados cuidados para prevenir-lhe o coração da
depravação que nasce de suas novas necessidades (EMÍLIO, p. 250).
Da cultura de terras resultou
necessariamente a sua partilha; da propriedade, uma vez reconhecida, as
primeiras regras de justiça. Isso porque, para dar a alguém o que é seu, é
preciso que ele possua alguma coisa. Os homens cresceram o olho nas coisas preocupando-se
com o futuro, tendo consciência de possuírem algum bem passível
de perda, e passaram a temer
a represália dos danos que poderia causar a outrem (DISCURSO, p. 95/96).
3. O homem em sociedade e suas
limitações
O homem se vê sob uma nova ordem, com todas as suas faculdades desenvolvidas: memória, imaginação,
amor-próprio, razão, vontade. Esse desenvolvimento, contudo, o levou a sofrer
padecimentos que jamais
conhecera antes. Outrora
livre e independente, agora às voltas
com uma multidão de novas necessidades, passa a estar
sujeito não só à natureza, mas sobretudo a seus
semelhantes, dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se
torna senhor: “rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro,
e a mediocridade o impede de viver sem eles” (DISCURSO, p. 97).
Agora, às vezes, o certo a
fazer é ser falso e artificioso para com uns; imperativo e duro para com
outros. Por conveniência, iludir aqueles de quem necessita, quando não puder
fazer- se temido por eles ou não interessar ser-lhes útil. A ambição, a gana de aumentar a fortuna para se colocar acima dos outros
contamina a todos, levando a se prejudicarem mutuamente, frequentemente usando
a máscara da bondade. De um lado, há concorrência e rivalidade; de outro,
oposição de interesses, e de ambos, o desejo oculto de alcançar lucros a
expensas de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da
propriedade, consubstanciando a desigualdade então nascente (DISCURSO, p.
97/98).
Os ricos tiveram êxito em convencer os despossuídos de que teriam a sua liberdade
assegurada. Assim, estes
ao tempo em que reconheciam as vantagens de se estabelecer um pacto político, não tinham discernimento ou experiência suficiente para antever os perigos. De outro
lado, os mais capazes de pressentir os abusos eram aqueles que tencionavam
aproveitar-se deles. Ocorre que até os prudentes compreenderam a necessidade de resolverem-se a sacrificar
parte de sua liberdade para conservar a do outro, como um ferido manda cortar
um braço para salvar o resto do corpo (DISCURSO, p. 100).
Tal foi, provavelmente, a
origem da sociedade. Daí em diante, vieram leis criando novos entraves ao fraco
e novas forças ao rico, leis que destruíram irremediavelmente a liberdade natural,
fixaram para sempre
a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma
usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos,
sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.
As sociedades, multiplicando-se ou
É menos a força dos braços
que a moderação dos corações que torna os homens independentes e livres. Aquele
que deseja poucas coisas depende de poucas pessoas; mas, confundindo sempre
nossos vãos desejos
com nossas necessidades físicas, aqueles que fizeram
destas últimas os fundamentos da sociedade humana
confundiram os efeitos
com as causas e se limitaram a perder-se em todos seus
raciocínios (EMÍLIO, p. 276).
O homem da sociedade está inteiramente em sua máscara.
Não estando quase nunca
em si mesmo, quando está se sente estranho, e quando é forçado a tornar-se a si mesmo,
se sente constrangido. O que
ele é não lhe importa; o que ele parece ser, é tudo para ele (EMÍLIO, p. 269).
No estado de natureza, existe
uma igualdade de fato real e indestrutível, dado que é impossível, nesse
estado, que a diferença de homem a homem seja grande o bastante para, sozinha,
tornar um dependente do outro. No estado civil, existe uma igualdade de direito
quimérica e vã, pois os próprios meios destinados a mantê-la servem para
destrui-la, e a força pública, unida ao mais forte para destruir
o mais fraco, rompe o equilíbrio que a natureza
havia colocado entre eles. O espírito universal das leis de todos os
países é favorecer sempre o forte contra o fraco,
e o que tem contra
o que nada tem: este inconveniente é inevitável e sem exceção. Desta primeira contradição decorrem
todas as que se observam
na ordem civil,
entre a aparência e a realidade. Sempre o maior
número de pessoas será sacrificado ao menor número, e o interesse público ao
interesse particular. Estes termos especiosos, justiça e subordinação, sempre
servirão de instrumentos para a violência e de armas para a iniquidade (EMÍLIO,
p. 276).
Para conhecer os homens, é
preciso vê-los agir. No mundo, ouvimo-los falar; exibem seus discursos e escondem suas ações; na história, porém,
estas são desvendadas e eles são julgados
pelos fatos. Suas próprias palavras ajudam a
apreciá-los, pois, comparando o que fazem com o que dizem,
vemos tanto o que são como o que desejam
aparentar ser; quanto
mais se disfarçam, melhor os conhecemos (EMÍLIO, p. 278).
4. O homem e sua liberdade no estado civil
Homens ambiciosos aproveitaram-se de determinadas circunstâncias para perpetuar seus
mandatos em suas famílias, enquanto o povo já estava acostumado com a
dependência, com a calma e as comodidades da vida, e, sendo incapaz de quebrar
seus grilhões, deixou aumentar a sua servidão, querendo
manter a sua tranquilidade. Assim,
a tradição hereditária se consolidou, os chefes
se apossaram da magistratura como um bem de família,
e se consideravam proprietários do Estado.
Passaram a chamar
seus concidadãos de escravos, a incluí-los, como o
gado, entre as coisas que lhes pertenciam, e a chamar
a si mesmos de iguais
aos deuses e de reis dos reis (DISCURSO, p. 109/110).
O processo da desigualdade
desencadeou-se com o estabelecimento da lei e do direito de propriedade, continuou com a instituição da magistratura e culminou com a
transformação do poder
legítimo em poder arbitrário. Assim,
o estado antagônico de rico-pobre foi
autorizado primeiro, depois o de poderoso-fraco e por último o de
senhor-escravo, sendo este o cúmulo da desigualdade e o termo em que todos os
outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo,
ou o forcem a se aproximar da instituição legítima (DISCURSO, p. 110).
Os vícios que tornam as
instituições necessárias são os mesmos que tornam inevitável o abuso. Um país em que ninguém
ludibriasse as leis nem abusasse
da magistratura, não teria
necessidade nem de magistrados nem de leis.
Como as leis não têm a força
das paixões, elas se prestam
a conter os homens, mas são ineficazes para mudá-los (DISCURSO, p. 110).
O homem selvagem vive em si
mesmo; o homem social, sempre fora de si, vive preocupado com a opinião dos
outros e se reconhece pelo julgamento que os outros fazem de si. Mergulhado em
tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, o homem social se
apresenta com um exterior enganador e frívolo: tem honra, mas não tem virtude, tem razão, mas não tem sabedoria, satisfaz-se
de prazer, mas não goza a felicidade. Este não era, absolutamente, o estado
original do homem. Foi o espírito da sociedade e a desigualdade que ela
engendra, unicamente, que mudaram todas as inclinações naturais da espécie
humana (DISCURSO, p. 115).
Uma vida cheia de
divertimentos produz uma aparência de verdadeira felicidade. Já uma vida igual
e uniforme parece, a princípio, tediosa. Entretanto, observando melhor,
percebe-se que, ao contrário do que parece, “o mais doce hábito da alma
consiste numa moderação do prazer
que dá pouca margem ao desejo e ao desgosto”. Na verdade, a inquietude
dos desejos produz a curiosidade, a inconstância; o vazio dos prazeres
turbulentos produz o tédio. O homem não se aborrece nunca com a sua condição,
quando não conhece outra mais agradável. De todos os homens do mundo, os
selvagens são os menos curiosos e os menos entediados; tudo lhes é indiferente: não desfrutam das coisas, mas de si mesmos; passam
a vida sem fazer nada e nunca
se entediam (EMÍLIO, p. 269).
Quando se consideram, por um
lado, os imensos trabalhos dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes
inventadas, tantas forças empregadas, abismos superados, montanhas arrasadas,
rochas arrebentadas, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos
sulcados, pântanos esgotados, enormes construções erguidas sobre a terra, o mar
coberto de navios e de marinheiros. E, por outro lado, quando se procuram as
verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana,
o que se vê é a deplorável cegueira do homem, que tudo faz
para saciar seu orgulho e vaidade, correndo atrás de todas as misérias que lhe podem arruinar, e que a natureza tivera o cuidado de
lhe afastar (DISCURSO, p. 127).
Os homens se tornaram maus,
chegaram a um estado de depravação pelos progressos que fez e os conhecimentos
que adquiriu. A sociedade necessariamente leva os homens a se odiarem,
na medida em que seus interesses se cruzam. Na aparência, eles prestam
serviços uns aos outros, mas, na realidade, vivem causando entre si todos os males que se possa
imaginar. O que esperar de um comércio onde a razão particular dita máximas que
são contrárias àquelas ditadas
pela razão pública
(pelo corpo da sociedade), onde cada um encontra
seu lucro na infelicidade de outrem? (DISCURSO, p. 127).
O homem selvagem, depois de
ter comido, fica em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes. Se tiver que disputar o alimento, jamais avança desferindo golpes sem antes comparar
a dificuldade que enfrentaria para vencer com a que enfrentaria para encontrá-lo em outro lugar. Não há orgulho a interferir no combate e este se resume em alguns
murros: o vencedor come, o vencido vai tentar a sorte, a paz reina.
Já o homem em sociedade é insaciável: vive procurando adquirir o necessário, o
supérfluo, as delícias; depois se dedica a ajuntar imensas riquezas e, por último,
procura arrebanhar súditos
e escravos. Assim,
depois de
experimentar longos períodos de prosperidade, de
terem sido devorados muitos tesouros e arruinados muitos homens, o herói
civilizado não se dará por satisfeito enquanto não tiver suplantado tudo e não
for ele próprio o único senhor do universo (DISCURSO, p. 128).
5. Da liberdade sob a égide
do contrato social
Os homens nascem iguais e
livres e só alienam sua liberdade em proveito próprio. O mais forte nunca é
suficientemente forte para ser sempre o senhor, a não ser transformando a sua força em direito e a obediência em dever. Quem cede à força o faz por necessidade e não
por vontade. A força não faz o direito. O dever de obedecer é exigível somente
a poderes legítimos. Visto que homem algum
tem autoridade natural
sobre seus semelhantes, e que a força
não produz nenhum direito, só restam as convenções como base de toda a
autoridade legítima existente entre os homens (CONTRATO, p. 56, 59, 61).
O contrato social é concebido como uma forma
de associação que defenda e proteja
a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum.
Dessa forma, cada um, unindo- se a todos, só obedece, contudo, a
si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes (CONTRATO, p. 69/70).
A lógica do contrato
social consiste em que “cada um dando-se
a todos não se dá a
ninguém”, e como não existe
um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito
que se lhe cede sobre si
mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde; ganha-se ainda maior força
para conservar o que se tem (CONTRATO, p. 70/71).
Uma vez estabelecido o pacto,
nasce uma nova pessoa de natureza bem
singular:
em lugar da pessoa particular de cada contratante,
um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da
assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Essa pessoa pública,
que se forma desse modo
pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e,
hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando
comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos,
enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto
submetidos às leis do Estado (CONTRATO, p. 71).
Violando-se o pacto social,
cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural,
perdendo a liberdade convencional (CONTRATO, p. 70).
“O que o homem perde pelo
contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto
aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a
propriedade de tudo que possui” (CONTRATO, p. 77).
Cabe notar a distinção entre
liberdade natural e liberdade civil. A primeira só conhece
limites nas forças do indivíduo, enquanto a segunda se limita pela vontade
geral. E entre posse e propriedade. Aquela constitui-se por
efeito da força ou o direito do primeiro ocupante; esta, por um título
positivo, isto é, emitido pelo Estado (CONTRATO, p. 78).
Às aquisições do estado civil
o contrato social acrescenta uma nova liberdade: “a liberdade moral, única a
tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite
é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu
a si mesmo é liberdade” (CONTRATO, p. 78).
Uma vez instituído o contrato
social, os bens dos particulares, que haviam sido adquiridos por usurpação,
agora são garantidos por um estatuto legítimo, substituindo-se a posse
ilegítima por um direito legítimo, e o gozo pela propriedade. “Passando então
os possuidores a serem considerados depositários do bem público, estando
respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e sustentados por
todas as suas forças contra o estrangeiro” (CONTRATO, p. 81).
Para garantir o pleno exercício da soberania, “o direito que cada particular tem sobre
seus próprios bens estará sempre subordinado ao direito
que a comunidade tem sobre todos” (CONTRATO, p. 81).
O pacto fundamental,
além de manter a igualdade natural, substitui a desigualdade física - de força ou de
gênio - por uma igualdade moral e legítima, de modo que “todos se tornam iguais
por convenção e direito” (CONTRATO, p. 81).
Convenções e leis são
necessárias para unir os direitos aos deveres e conduzir a justiça a seu
objetivo. No estado de natureza, em que tudo é comum a todos, nada se deve
porque a ninguém se prometeu, e só reconhecemos como de outrem aquilo que nos
for inútil. No estado civil, diferentemente, todos os direitos são fixados pela
Lei (CONTRATO, p. 106).
A Lei considera os súditos
como corpo e as ações como abstratas; não considera um homem individualmente, nem uma ação particularmente. As leis são atos da vontade geral. O príncipe não está acima das leis
porque é membro do Estado. A Lei não poderá ser injusta, pois ninguém é injusto consigo mesmo. Só se pode ser livre e estar sujeito às leis porque estas não passam de registros de
nossas vontades (CONTRATO, p. 107).
Sob a égide do pacto fundamental, só a vontade
geral obriga os particulares, e só se pode
estar certo de que uma vontade particular é conforme à vontade geral depois de submetê-
la ao sufrágio livre do povo (CONTRATO, p. 111).
CONCLUSÃO
De um mergulho em certas
intuições de Jean-Jacque Rousseau, emergimos com boas noções sobre os primórdios do homem na terra e sua relação
com a natureza, com o outro
e consigo mesmo. Houve um tempo em que ele vivia sem qualquer noção do teu e do meu, sem nenhuma ideia de justiça, sem pensar
em vingança.
Assim que se vê em sociedade, começa a sentir
vergonha, a usar máscaras, temendo a opinião dos outros. Começa a
tomar cuidados para enfrentar a força das novas necessidades e não se
contaminar pelos vícios da depravação. A ambição por riquezas o torna invejoso,
levando-o a prejudicar o outro e vice-versa, quase sempre usando a máscara da
bondade.
Tendo chegado até aqui,
veio-me a lembrança do que o Gênesis1 nos diz a respeito
de relações interpessoais. Diz que uma mulher
é enchida de riso e que, por imposição dela, uma
outra é despedida com o filho para chorar o choro da morte, no deserto:
“E Sara disse: ´Deus me encheu de riso, e todos que souberem disso
rirão comigo’”,
Gn 21. 6.
“E disse [Sara] a Abraão:
‘livre-se daquela escrava
e do seu filho, porque ele
jamais será herdeiro com o meu filho Isaque’”, Gn 21.10.
“Quando acabou a água da vasilha, ela [Hagar] deixou o menino [Ismael] debaixo de um arbusto e foi sentar-se perto dali, à distância de um tiro de flecha, porque pensou: ‘não posso ver o menino morrer’. Sentada ali perto, começou a chorar”, Gn 21.15,16.
1 Bíblia nova versão internacional. Sociedade Bíblica Internacional. Várzea Paulista – SP: Casa Publicadora Paulista, 2021.
Desde quando a propriedade privada se estabeleceu no mundo, os homens passaram a sofrer os males da concorrência, da rivalidade, da oposição de interesses, do desejo de lucro às custas de outrem e de tantos outros males do mesmo gênero.
O que pode tornar
os homens independentes e livres é menos a força dos braços do que a moderação dos corações. Aquele
que deseja poucas coisas depende de poucas pessoas. Ocorre que, na realidade,
os homens confundem seus vãos desejos com suas necessidades físicas,
consequentemente, chegam a se perder em todos os seus raciocínios.
O homem social se apresenta com um exterior
enganador e frívolo:
tem honra, mas não tem virtude, tem razão, mas não
tem sabedoria, satisfaz-se de prazer, mas não goza a felicidade. O estado
original do homem não era esse. Foi o espírito da sociedade e a desigualdade
que ela engendra, unicamente, que mudaram todas as inclinações naturais da
espécie humana.
O homem em sociedade não se
cansa de correr atrás de coisas: vive procurando adquirir o necessário, o
supérfluo, as delícias; depois se dedica a ajuntar imensas riquezas e, por
último, procura arrebanhar súditos e escravos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ROUSSEAU, Jean-Jacques.
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, vol.
II. Tradução: Lourdes Santos Machado. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda.,
1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do
contrato social, vol. I. Tradução: Lourdes Santos Machado. São Paulo: Editora
Nova Cultural Ltda., 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio,
ou, da Educação. Tradução: Laurent
de Saes.
São Paulo: Edipro,
2017.

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