sábado, 4 de janeiro de 2025

O HOMEM E SUA LIBERDADE SEGUNDO JEAN-JACQUES ROUSSEAU

 


 

O homem e sua liberdade segundo Jean-Jacques Rousseau

 

Por Arides Leite Santos

 

Este artigo apresenta algumas intuições filosóficas de Jean-Jacques Rousseau sobre a liberdade do homem no estado de natureza e no estado civil, apreendidas no seio de suas três grandes obras: “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, “Emílio, ou, da educação” e “Do contrato social”.

1.O homem e sua liberdade no estado de natureza

O homem é livre para agir, isto é, tem o poder de decidir se aceita ou rejeita algo. Há homens que se entregam a excessos e daí lhes vem febre e morte. Agem assim “porque o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala”. O que mais distingue o homem dos animais não é o entendimento, mas a liberdade. Assim, livre para concordar ou resistir, e consciente dessa liberdade, o homem se sente capaz de fazer escolhas, e a base desse sentir é constituída de atos puramente espirituais (DISCURSO, p. 64).

A faculdade de se aperfeiçoar é outra característica do homem que o distingue dos animais, e está presente tanto no indivíduo quanto na espécie. Dotado dessa faculdade e com o auxílio das circunstâncias, o homem desenvolve todas as outras. “O animal, ao contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, será a mesma que era no primeiro ano” (DISCURSO, p. 64/65).

As necessidades fazem surgir as paixões no homem e lhe propiciam o progresso nos conhecimentos, “pois só se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer, ou pelo simples impulso da natureza”. É por isso que “o homem selvagem, privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta última espécie”, pois “seus desejos” se limitam a “suas necessidades físicas”. “Os únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso”. E os únicos males que teme são “a dor e a fome”. Sim, a dor - e não a morte -, “pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal” (DISCURSO, p. 66).

De todas as paixões, a única que nasce com o homem e não o deixa nunca durante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras são apenas modificações (EMÍLIO, p. 249).

O entendimento humano muito deve às paixões, pois é em função delas que a faculdade da razão se aperfeiçoa; “só procuramos conhecer porque desejamos usufruir” (DISCURSO, p. 65).

“O homem encontrava unicamente no instinto” - diz Rousseau “todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão cultivada encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade”. Sendo assim, “qual poderia ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde?” Quem “ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensou em lamentar-se da vida e querer morrer”? E “qual das duas a vida civil ou a natural – é mais suscetível de tornar-se insuportável àqueles que a fruem?” (DISCURSO, p. 74/75).

Em contraposição ao que Sócrates e outros iluminados ensinaram, Rousseau compreende a piedade como um sentimento nato do ser humano e não como uma virtude adquirida ao longo da vida com o desenvolvimento da razão (DISCURSO, p. 78/79).

Ele atribui a essa “bondade natural” do homem uma função reguladora admirável.

Vejamos em suas próprias palavras:

Moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, a piedade concorre para a conservação mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer. No estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; ela [a piedade], em lugar desta máxima sublime da justiça raciocinada – Faze a outrem o que desejas que façam a ti -, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, mas talvez mais útil do que a precedente – Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem. Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis, deve-se procurar a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir mal, mesmo independentemente das máximas da educação (DISCURSO, p. 78/79).

Os homens se preocupavam mais em se defender do mal que temiam sofrer do que em fazer o mal a outrem, e assim viviam sem estarem sujeitos a disputas perigosas. Não tinham nenhuma espécie de comércio entre si, não conheciam a vaidade, a consideração, a estima, o desprezo. Viviam sem qualquer noção do teu e do meu. Não tinham nenhuma ideia verdadeira de justiça. Não pensavam em vingança, a não ser ali no calor do momento, “à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram”. Então, suas disputas raramente levariam a consequências sangrentas (DISCURSO, p. 79).

No estado de natureza, o homem provavelmente vivia assim:

errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus semelhantes, bem como sem nenhum desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, [...] sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. Se por acaso descobria qualquer coisa, era [incapaz] de comunicá-la, [como o era de reconhecer] os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança (DISCURSO, p. 81/82).

De espírito mais esclarecido, deixando de adormecer sob a primeira árvore, ou de recolher-se a cavernas, o homem encontrou alguns tipos de machados de pedra, que serviam para cortar lenha, cavar a terra e fazer choupanas de ramos, que passou a cobrir de argila e de lama. A essa época se prende uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, supõe-se que os fracos acharam mais rápido seguro imitá-los do que tentar desalojá-los. Quanto aos que já possuíam cabanas, certamente nenhum deles procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um combate violento com a família ocupante (DISCURSO, p. 90).

A moralidade vai se introduzindo nas ações humanas, o indivíduo se comporta como o juiz e o vingador das ofensas que recebe. A bondade que antes lhe era útil no estado puro de natureza, agora na sociedade nascente não lhe serve tanto. Punições mais severas são impostas para ofensas que se tornam mais frequentes. O terror das vinganças se faz presente em lugar de freio das leis. Comparado com o estado primitivo da indolência e com aquele onde a petulância do amor-próprio predomina, “esse período de desenvolvimento das faculdades humanas [...] deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura”, e “era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem, que certamente saiu dele por qualquer acaso funesto que, para a utilidade comum, jamais deveria ter acontecido” (DISCURSO, p. 93).

2. Do estado de natureza para o estado civil

Rousseau entende que a ideia de propriedade veio a se formar no espírito humano como resultado da evolução de ideias anteriores ao longo de séculos, e que fora preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração a geração, antes de o estado de natureza chegar a seu termo. a consolidação da sociedade civil parece que se deve a atos de afirmação da propriedade privada:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ (DISCURSO, p. 87).

O hábito de viver junto levou o homem a conhecer os mais doces sentimentos que se pode mencionar, como o amor conjugal e o amor paterno. “Cada família tornou-se uma pequena sociedade, ainda mais unida por ser a afeição recíproca e a liberdade os únicos liames”. Foi assim que “se estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois sexos, que até aí nenhuma apresentavam”. Sedentárias, as mulheres tomavam conta da cabana e dos filhos, enquanto os homens iam procurar comida para suprir a todos (DISCURSO, p. 90/91).

Com a vida sedentária, começa a se formar uma nação, mas não de forma organizada sob leis, e sim em virtude do mesmo gênero de vida, de alimentos, da influência comum do clima. Uma vizinhança permanente torna o ambiente propício para que haja ligações entre as famílias. “Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente, adquirem-se ideias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência”. Passam a se ver com frequência cada vez maior. “Insinua-se na alma um sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso; com o amor surge o ciúme, a discórdia triunfa e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano” (DISCURSO, p. 91/92).

O homem começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, valorizando a estima pública, e nesse caminho de valorização do ego tomou um rumo decisivo e sem volta.

Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício;

dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja (DISCURSO, p. 92).

Os homens viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, então desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis, trazendo junto a necessidade de regá-los com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (DISCURSO, p. 94).

Ter poucas necessidades e se comparar pouco aos outros é o que torna o homem essencialmente bom. O que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e atentar muito à opinião. Ocorre que, por não poderem viver sempre sós, dificilmente os homens viverão sempre bons: essa dificuldade aumenta com as suas relações. É por isso que os perigos da sociedade tornam indispensável que sejam tomados cuidados para prevenir-lhe o coração da depravação que nasce de suas novas necessidades (EMÍLIO, p. 250).

Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha; da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça. Isso porque, para dar a alguém o que é seu, é preciso que ele possua alguma coisa. Os homens cresceram o olho nas coisas preocupando-se com o futuro, tendo consciência de possuírem algum bem passível de perda, e passaram a temer a represália dos danos que poderia causar a outrem (DISCURSO, p. 95/96).

3. O homem em sociedade e suas limitações

O homem se sob uma nova ordem, com todas as suas faculdades desenvolvidas: memória, imaginação, amor-próprio, razão, vontade. Esse desenvolvimento, contudo, o levou a sofrer padecimentos que jamais conhecera antes. Outrora livre e independente, agora às voltas com uma multidão de novas necessidades, passa a estar sujeito não à natureza, mas sobretudo a seus semelhantes, dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: “rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a mediocridade o impede de viver sem eles” (DISCURSO, p. 97).

Agora, às vezes, o certo a fazer é ser falso e artificioso para com uns; imperativo e duro para com outros. Por conveniência, iludir aqueles de quem necessita, quando não puder fazer- se temido por eles ou não interessar ser-lhes útil. A ambição, a gana de aumentar a fortuna para se colocar acima dos outros contamina a todos, levando a se prejudicarem mutuamente, frequentemente usando a máscara da bondade. De um lado, há concorrência e rivalidade; de outro, oposição de interesses, e de ambos, o desejo oculto de alcançar lucros a expensas de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade, consubstanciando a desigualdade então nascente (DISCURSO, p. 97/98).

Os ricos tiveram êxito em convencer os despossuídos de que teriam a sua liberdade assegurada. Assim, estes ao tempo em que reconheciam as vantagens de se estabelecer um pacto político, não tinham discernimento ou experiência suficiente para antever os perigos. De outro lado, os mais capazes de pressentir os abusos eram aqueles que tencionavam aproveitar-se deles. Ocorre que até os prudentes compreenderam a necessidade de resolverem-se a sacrificar parte de sua liberdade para conservar a do outro, como um ferido manda cortar um braço para salvar o resto do corpo (DISCURSO, p. 100).

Tal foi, provavelmente, a origem da sociedade. Daí em diante, vieram leis criando novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, leis que destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. As sociedades, multiplicando-se ou  estendendo-se rapidamente, logo cobriram toda a superfície da terra, e não mais se pôde encontrar um único ponto do universo em que se conseguisse escapar ao jugo e subtrair-se ao gládio, frequentemente mal dirigido, que cada homem perpetuamente passou a ver suspenso sobre a sua cabeça. Tornando-se, deste modo, o direito civil a regra comum dos cidadãos, a lei natural encontrou lugar, entre as diversas sociedades, onde, sob o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas para tornar o comércio possível e fazer as vezes da comiseração natural. Entre as sociedades, a piedade perdeu quase toda a força que tinha entre os homens, só restando em algumas grandes almas cosmopolitas, que são capazes de transpor as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do ser soberano que os criou, agasalham todo o gênero humano na sua benevolência (DISCURSO, p. 100/101).

É menos a força dos braços que a moderação dos corações que torna os homens independentes e livres. Aquele que deseja poucas coisas depende de poucas pessoas; mas, confundindo sempre nossos vãos desejos com nossas necessidades físicas, aqueles que fizeram destas últimas os fundamentos da sociedade humana confundiram os efeitos com as causas e se limitaram a perder-se em todos seus raciocínios (EMÍLIO, p. 276).

O homem da sociedade está inteiramente em sua máscara. Não estando quase nunca em si mesmo, quando está se sente estranho, e quando é forçado a tornar-se a si mesmo, se sente constrangido. O que ele é não lhe importa; o que ele parece ser, é tudo para ele (EMÍLIO, p. 269).

No estado de natureza, existe uma igualdade de fato real e indestrutível, dado que é impossível, nesse estado, que a diferença de homem a homem seja grande o bastante para, sozinha, tornar um dependente do outro. No estado civil, existe uma igualdade de direito quimérica e vã, pois os próprios meios destinados a mantê-la servem para destrui-la, e a força pública, unida ao mais forte para destruir o mais fraco, rompe o equilíbrio que a natureza havia colocado entre eles. O espírito universal das leis de todos os países é favorecer sempre o forte contra o fraco, e o que tem contra o que nada tem: este inconveniente é inevitável e sem exceção. Desta primeira contradição decorrem todas as que se observam na ordem civil, entre a aparência e a realidade. Sempre o maior número de pessoas será sacrificado ao menor número, e o interesse público ao interesse particular. Estes termos especiosos, justiça e subordinação, sempre servirão de instrumentos para a violência e de armas para a iniquidade (EMÍLIO, p. 276).

Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo, ouvimo-los falar; exibem seus discursos e escondem suas ações; na história, porém, estas são desvendadas e eles são julgados pelos fatos. Suas próprias palavras ajudam a apreciá-los, pois, comparando o que fazem com o que dizem, vemos tanto o que são como o que desejam aparentar ser; quanto mais se disfarçam, melhor os conhecemos (EMÍLIO, p. 278).

4. O homem e sua liberdade no estado civil

Homens ambiciosos aproveitaram-se de determinadas circunstâncias para perpetuar seus mandatos em suas famílias, enquanto o povo já estava acostumado com a dependência, com a calma e as comodidades da vida, e, sendo incapaz de quebrar seus grilhões, deixou aumentar a sua servidão, querendo manter a sua tranquilidade. Assim, a tradição hereditária se consolidou, os chefes se apossaram da magistratura como um bem de família, e se consideravam proprietários do Estado. Passaram a chamar seus concidadãos de escravos, a incluí-los, como o gado, entre as coisas que lhes pertenciam, e a chamar a si mesmos de iguais aos deuses e de reis dos reis (DISCURSO, p. 109/110).

O processo da desigualdade desencadeou-se com o estabelecimento da lei e do direito de propriedade, continuou com a instituição da magistratura e culminou com a

 

transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado antagônico de rico-pobre foi autorizado primeiro, depois o de poderoso-fraco e por último o de senhor-escravo, sendo este o cúmulo da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo, ou o forcem a se aproximar da instituição legítima (DISCURSO, p. 110).

Os vícios que tornam as instituições necessárias são os mesmos que tornam inevitável o abuso. Um país em que ninguém ludibriasse as leis nem abusasse da magistratura, não teria necessidade nem de magistrados nem de leis. Como as leis não têm a força das paixões, elas se prestam a conter os homens, mas são ineficazes para mudá-los (DISCURSO, p. 110).

O homem selvagem vive em si mesmo; o homem social, sempre fora de si, vive preocupado com a opinião dos outros e se reconhece pelo julgamento que os outros fazem de si. Mergulhado em tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, o homem social se apresenta com um exterior enganador e frívolo: tem honra, mas não tem virtude, tem razão, mas não tem sabedoria, satisfaz-se de prazer, mas não goza a felicidade. Este não era, absolutamente, o estado original do homem. Foi o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra, unicamente, que mudaram todas as inclinações naturais da espécie humana (DISCURSO, p. 115).

Uma vida cheia de divertimentos produz uma aparência de verdadeira felicidade. Já uma vida igual e uniforme parece, a princípio, tediosa. Entretanto, observando melhor, percebe-se que, ao contrário do que parece, “o mais doce hábito da alma consiste numa moderação do prazer que pouca margem ao desejo e ao desgosto”. Na verdade, a inquietude dos desejos produz a curiosidade, a inconstância; o vazio dos prazeres turbulentos produz o tédio. O homem não se aborrece nunca com a sua condição, quando não conhece outra mais agradável. De todos os homens do mundo, os selvagens são os menos curiosos e os menos entediados; tudo lhes é indiferente: não desfrutam das coisas, mas de si mesmos; passam a vida sem fazer nada e nunca se entediam (EMÍLIO, p. 269).

Quando se consideram, por um lado, os imensos trabalhos dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos superados, montanhas arrasadas, rochas arrebentadas, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos sulcados, pântanos esgotados, enormes construções erguidas sobre a terra, o mar coberto de navios e de marinheiros. E, por outro lado, quando se procuram as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, o que se é a deplorável cegueira do homem, que tudo faz para saciar seu orgulho e vaidade, correndo atrás de todas as misérias que lhe podem arruinar, e que a natureza tivera o cuidado de lhe afastar (DISCURSO, p. 127).

Os homens se tornaram maus, chegaram a um estado de depravação pelos progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu. A sociedade necessariamente leva os homens a se odiarem, na medida em que seus interesses se cruzam. Na aparência, eles prestam serviços uns aos outros, mas, na realidade, vivem causando entre si todos os males que se possa imaginar. O que esperar de um comércio onde a razão particular dita máximas que são contrárias àquelas ditadas pela razão pública (pelo corpo da sociedade), onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de outrem? (DISCURSO, p. 127).

O homem selvagem, depois de ter comido, fica em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes. Se tiver que disputar o alimento, jamais avança desferindo golpes sem antes comparar a dificuldade que enfrentaria para vencer com a que enfrentaria para encontrá-lo em outro lugar. Não orgulho a interferir no combate e este se resume em alguns murros: o vencedor come, o vencido vai tentar a sorte, a paz reina. o homem em sociedade é insaciável: vive procurando adquirir o necessário, o supérfluo, as delícias; depois se dedica a ajuntar imensas riquezas e, por último, procura arrebanhar súditos e escravos. Assim, depois de

 

experimentar longos períodos de prosperidade, de terem sido devorados muitos tesouros e arruinados muitos homens, o herói civilizado não se dará por satisfeito enquanto não tiver suplantado tudo e não for ele próprio o único senhor do universo (DISCURSO, p. 128).

5. Da liberdade sob a égide do contrato social

Os homens nascem iguais e livres e só alienam sua liberdade em proveito próprio. O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, a não ser transformando a sua força em direito e a obediência em dever. Quem cede à força o faz por necessidade e não por vontade. A força não faz o direito. O dever de obedecer é exigível somente a poderes legítimos. Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes, e que a força não produz nenhum direito, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens (CONTRATO, p. 56, 59, 61).

O contrato social é concebido como uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum. Dessa forma, cada um, unindo- se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes (CONTRATO, p. 69/70).

A lógica do contrato social consiste em que “cada um dando-se a todos não se a ninguém”, e como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde; ganha-se ainda maior força para conservar o que se tem (CONTRATO, p. 70/71).

Uma vez estabelecido o pacto, nasce uma nova pessoa de natureza bem singular:

em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma desse modo pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado (CONTRATO, p. 71).

Violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional (CONTRATO, p. 70).

“O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui” (CONTRATO, p. 77).

Cabe notar a distinção entre liberdade natural e liberdade civil. A primeira só conhece limites nas forças do indivíduo, enquanto a segunda se limita pela vontade geral. E entre posse e propriedade. Aquela constitui-se por efeito da força ou o direito do primeiro ocupante; esta, por um título positivo, isto é, emitido pelo Estado (CONTRATO, p. 78).

Às aquisições do estado civil o contrato social acrescenta uma nova liberdade: “a liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesmo é liberdade” (CONTRATO, p. 78).

 

Uma vez instituído o contrato social, os bens dos particulares, que haviam sido adquiridos por usurpação, agora são garantidos por um estatuto legítimo, substituindo-se a posse ilegítima por um direito legítimo, e o gozo pela propriedade. “Passando então os possuidores a serem considerados depositários do bem público, estando respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e sustentados por todas as suas forças contra o estrangeiro” (CONTRATO, p. 81).

Para garantir o pleno exercício da soberania, “o direito que cada particular tem sobre seus próprios bens estará sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos” (CONTRATO, p. 81).

O pacto fundamental, além de manter a igualdade natural, substitui a desigualdade física - de força ou de gênio - por uma igualdade moral e legítima, de modo que “todos se tornam iguais por convenção e direito” (CONTRATO, p. 81).

Convenções e leis são necessárias para unir os direitos aos deveres e conduzir a justiça a seu objetivo. No estado de natureza, em que tudo é comum a todos, nada se deve porque a ninguém se prometeu, e só reconhecemos como de outrem aquilo que nos for inútil. No estado civil, diferentemente, todos os direitos são fixados pela Lei (CONTRATO, p. 106).

A Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas; não considera um homem individualmente, nem uma ação particularmente. As leis são atos da vontade geral. O príncipe não está acima das leis porque é membro do Estado. A Lei não poderá ser injusta, pois ninguém é injusto consigo mesmo. Só se pode ser livre e estar sujeito às leis porque estas não passam de registros de nossas vontades (CONTRATO, p. 107).

Sob a égide do pacto fundamental, a vontade geral obriga os particulares, e se pode estar certo de que uma vontade particular é conforme à vontade geral depois de submetê- la ao sufrágio livre do povo (CONTRATO, p. 111).

CONCLUSÃO

De um mergulho em certas intuições de Jean-Jacque Rousseau, emergimos com boas noções sobre os primórdios do homem na terra e sua relação com a natureza, com o outro e consigo mesmo. Houve um tempo em que ele vivia sem qualquer noção do teu e do meu, sem nenhuma ideia de justiça, sem pensar em vingança.

Assim que se em sociedade, começa a sentir vergonha, a usar máscaras, temendo a opinião dos outros. Começa a tomar cuidados para enfrentar a força das novas necessidades e não se contaminar pelos vícios da depravação. A ambição por riquezas o torna invejoso, levando-o a prejudicar o outro e vice-versa, quase sempre usando a máscara da bondade.

Tendo chegado até aqui, veio-me a lembrança do que o Gênesis1 nos diz a respeito de relações interpessoais. Diz que uma mulher é enchida de riso e que, por imposição dela, uma outra é despedida com o filho para chorar o choro da morte, no deserto:

“E Sara disse: ´Deus me encheu de riso, e todos que souberem disso

rirão comigo’”, Gn 21. 6.

“E disse [Sara] a Abraão: ‘livre-se daquela escrava e do seu filho, porque ele jamais será herdeiro com o meu filho Isaque’”, Gn 21.10.

“Quando acabou a água da vasilha, ela [Hagar] deixou o menino [Ismael] debaixo de um arbusto e foi sentar-se perto dali, à distância de um tiro de flecha, porque pensou: ‘não posso ver o menino morrer’. Sentada ali perto, começou a chorar”, Gn 21.15,16. 

 

1 Bíblia nova versão internacional. Sociedade Bíblica Internacional. Várzea Paulista SP: Casa Publicadora Paulista, 2021.

 

Desde quando a propriedade privada se estabeleceu no mundo, os homens passaram a sofrer os males da concorrência, da rivalidade, da oposição de interesses, do desejo de lucro às custas de outrem e de tantos outros males do mesmo gênero.

O que pode tornar os homens independentes e livres é menos a força dos braços do que a moderação dos corações. Aquele que deseja poucas coisas depende de poucas pessoas. Ocorre que, na realidade, os homens confundem seus vãos desejos com suas necessidades físicas, consequentemente, chegam a se perder em todos os seus raciocínios.

O homem social se apresenta com um exterior enganador e frívolo: tem honra, mas não tem virtude, tem razão, mas não tem sabedoria, satisfaz-se de prazer, mas não goza a felicidade. O estado original do homem não era esse. Foi o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra, unicamente, que mudaram todas as inclinações naturais da espécie humana.

O homem em sociedade não se cansa de correr atrás de coisas: vive procurando adquirir o necessário, o supérfluo, as delícias; depois se dedica a ajuntar imensas riquezas e, por último, procura arrebanhar súditos e escravos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, vol. II. Tradução: Lourdes Santos Machado. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, vol. I. Tradução: Lourdes Santos Machado. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, da Educação. Tradução: Laurent de Saes.

São Paulo: Edipro, 2017.

 


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