domingo, 25 de junho de 2023

MEU VERSO

 


MEU VERSO

Carlos Araújo


O meu verso é natural

Da Chapada Diamantina.

Vem dos zelos de Mãe Lina

E das lições de moral.

Vem das Minas de cristal

Do calumbé e da pá.

Da lavanca de cavar

Do querer e do despojo.

Vem do bamburrar no bojo

De cristal a cintilar.


Vem d’aridez do carrasco

Da estiagem do agreste

Do vento que vem do leste

De graveto no penhasco.

É tão seco como o casco

Da cuia de cabaceira.

Nem palha que faz esteira

Tem a sua sequidão.

É seco como o torrão,

Como cinza em capoeira.


Tem marcas do desamparo

E virtude do perdão

Poder de superação

De um passado ignaro.

Vem d’um feliz anteparo

Com paz, carinho e amor.

Foi de anjo benfeitor,

Em formato de mulher,

Que com sacrifício e fé

Fez um ninho acolhedor.


Retrata a fauna e a flora:

O nado do mergulhão,

O voo do azulão

Bem no despertar da aurora.

Vem da figueira que chora

E do gosto de articum.

É negro como o anum

E brabo como tetéu.

Mandaçaia que faz mel

De flor de manga comum..


De essência singular,

Tem a mistura das cores,

Dos perfumes e sabores

Que captou do lugar.

É doce como araçá

E rapadura cerenta.

Tem o ardor da pimenta

E as cores do jasmim.

Tem cheiro de bogarim

E efeito de água-benta.


Vem da casa de terreiro

Pintada de tabatinga

Que tem água de moringa

E a luz de candeeiro.

Vem da pimenta-de-cheiro

Pra tempero de pirão

Cozinhado em caldeirão

Ensopado com verdura.

“De comer” com a mistura

De arroz com açafrão.


Vem da observação

Das nuvens beijando a serra,

Cheiro de chuva na terra

E do ronco de trovão.

Começo de plantação

De feijão-de-corda e milho.

Fumo, de corda, em sarilho

No quintal para secar.

Do voo do mangangá

E do mugir de novilho…


Do doce de compoteira

E gomo de mexerica

Água tomada na bica,

Café de chocolateira.

Cantiga de vó rendeira

Cochilo com cafuné.

Avô cheirando rapé

Com ar despreocupado.

Menino fotografado

Com a máquina de tripé.


Da moça trajando chita

No festejo de São João.

Igreja, reza e rojão,

E bandeirola que agita.

Do leiloeiro que grita,

Pedindo oferta melhor.

Da cachaça e trololó,

Casamento e batizado.

Do mastro sendo enfincado

Com vento trazendo pó.


Vem das tardes de prazer

Com bola de mangabeira

Muito jogo e brincadeira

Até candeia acender.

Do ver a lua nascer

No colo quente da vó.

Com picada de potó

Que, de noite, irrita e coça.

De manhã, na velha roça,

Plantando feijão no pó.


Fez inversa trajetória

Como numa regressão

Pra trazer da região

O que ficou na memória.

Vendedor contando história

De forma espirituosa

De meizinha milagrosa

Pra curar qualquer doença

Explorando a velha crença

Levando besta na prosa.


Traz de feira inspiração

Mais originalidade:

Da banca de brevidade

Com paçoca de pilão.

Da cigana que lê mão

Pra tirar qualquer quebranto.

Meninos em contracanto

Com tábuas de pirulito

Mulher rezando bendito

Vendendo imagem de Santo.


Trago a minha poesia

Das Lavras Diamantinas

Onde o cascalho das minas

Era de grande valia.

O interior da Bahia

Me deu o metro e a rima.

O resto veio do clima,

Do sol, da terra e do ar.

Do constante caminhar

No garimpo serra acima.


Ponho no verso o que via

Lá na Fonte do Pau-Louro

Nas gramas do quaradouro

Uma vasta estamparia.

Da bica a água escorria

Com mulher enchendo a lata.

A branca, a preta e a mulata,

Trançando a mesma rodilha

Pra andar na velha trilha

Sempre arrastando a pracata.


Só vi pé de caroá

Em terreno pedregoso

Com raiz de fedegoso

Minha avó fazia chá.

O bico do carcará

Era igual unha-de-gato.

Vi grassar bredo, no mato,

Como ervanço e jitirana.

Qualquer farinha baiana

Era medida no Prato.


No brejo, quando menino,

Brinquei com fogo-pagou

No Cercado de Doutor,

Velho Doutor Gasparino.

Em lamento matutino,

Uma pomba juriti.

Na Lagoa, o paturi,

Vi nadar entre o capim,

E o bate asas sem fim

Do pequeno Bem-te-vi.


Pro meu verso foi achado

Esse interior baiano.

Mascate vendendo pano

Soltando o palavreado.

Feira de sol empinado

Onde se vendia puba,

Tapioca de Imbaúba,

Carne seca de varal.

Farinha do Traçadal

E maniva da Pituba.


Vem do mais belo cenário:

Lá da Serra do Carranca,

Cuja beleza desbanca

Qualquer um receituário.

Vem do canto do canário,

Pintassilgo e zabelê.

Vem da pega e do sofrê

Nas flores do mulungu.

Vem do tempo do umbu,

Do preá, do saruê.


Traz ainda a emoção

Do mágico deslumbramento

Do girar do cata-vento

Na casa de Sinhorzão.

História de assombração

Em noite de lua cheia.

Casa de parede-meia

Com santo no oratório.

Menino de suspensório,

Domingo, cavando areia.


Sai do enredo do sonho

Do fluir do pensamento.

É distraído e atento,

Inteligente e bisonho.

Possui um poder medonho

Parece mais deus pagão.

Não foge de tentação

Tem forma de Ipupiara.

E seduz a deusa Iara

Ecoa pelo sertão.


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